Rosh Hashaná é mais do que a celebração de um novo ciclo. Ao se traduzir como cabeça do ano, ele nos convida a refletir sobre o sentido do tempo não apenas como sucessão linear de dias, mas como criação e reinício. A tradição judaica associa esses dias ao momento em que o mundo é colocado novamente em julgamento, como se a própria criação fosse revista a cada ciclo. A antropologia nos ensina que os rituais de passagem não apenas marcam a passagem do tempo, mas projetam normas de convivência e valores éticos. No caso judaico, trata-se de afirmar que cada geração é chamada a renovar sua responsabilidade diante da vida, da comunidade e do futuro.

O tempo, aqui, não se apresenta como linha ininterrupta, mas como ciclo. O ano retorna à sua cabeça para que a vida se renove, para que possamos reconstruir o que foi dilacerado. Essa concepção cíclica contrasta com o tempo moderno, que muitas vezes se apresenta como sucessão de crises sem fim. Talvez seja esse um dos ensinamentos mais urgentes para o Brasil contemporâneo: reaprender a regenerar-se, a sair do círculo vicioso da polarização para reencontrar o círculo vital da reconstrução. Como lembrava Victor Turner, os rituais possuem uma função liminar, criam momentos de suspensão da ordem estabelecida para abrir espaço ao novo. Rosh Hashaná é esse instante em que o tempo se reinicia e o futuro pode ser reinventado.

O toque do shofar, irregular, quase primitivo, é o chamado ao despertar. Não é música de concerto, é um grito arcaico que atravessa gerações. A antropologia o reconheceria como um ato de memória coletiva: nele se concentra a recordação de alianças antigas, mas também a urgência de cada geração em ser julgada, em ser convocada à responsabilidade. Em nossos dias, esse grito soa contra o antissemitismo que insiste em ressurgir em diferentes partes do mundo, mas também contra todas as formas de intolerância que corroem sociedades democráticas. O shofar, no Brasil, pode ser lido como chamado contra o esgarçamento do tecido social, contra a indiferença diante da violência política, da exclusão social, da devastação ambiental.

Rosh Hashaná nos lembra que cada vida é chamada a julgamento, mas que o julgamento divino não se encerra no indivíduo, estende-se à coletividade. É o pacto social, o pacto comunitário, que se encontra em jogo. A tradição judaica chama esse tempo de yamim noraim, dias de temor, porque em sua intensidade reside a chance de transformação. Esse temor, porém, não é paralisante, é antes um convite à ação. Como escreveu o Rebe de Lubavitch, em mensagem por ocasião de Rosh Hashaná de 5716 (1956), o balanço espiritual não deve levar ao desânimo, mesmo quando falhas são evidentes. Ao contrário, as boas ações são eternas e indestrutíveis, ligadas à centelha divina de cada ser humano, enquanto os erros, por sua natureza transitória, podem ser corrigidos pelo arrependimento sincero. Essa visão encorajadora nos lembra que mesmo diante de crises, pessoais ou coletivas, o bem não se perde e se acumula no tempo, construindo um mundo progressivamente melhor.

Se o mundo pode ser colocado em julgamento a cada ano, também pode ser recriado a cada geração pela responsabilidade humana de reparar, transformar e recompor. Ao iniciar o novo ano, cabe a cada um ouvir o shofar como metáfora de sua própria consciência. A voz que desperta não pede perfeição, mas responsabilidade, memória e esperança. Em um Brasil marcado pela divisão, em um mundo cada vez mais atravessado por conflitos e intolerâncias, talvez o maior ensinamento da festa seja esse: recomeçar exige reconhecer a fragilidade da

condição humana, mas também a grandeza de reconstruir juntos. Assim como a lua, que na tradição judaica representa a relação entre o povo e D’us, o ciclo se refaz. Há momentos de minguar, mas sempre a promessa de crescer novamente. Rosh Hashaná é esse recomeço, é a cabeça que devolve ao corpo social a possibilidade de vida e de futuro.

Pedro Mastrobuono

Patrocinadores