Por Carlos Reiss*

Qualquer iniciativa de transmissão que envolva o genocídio cometido pelos nazistas e seus colaboradores, ocorrido tanto no prelúdio quanto no âmbito da Segunda Guerra Mundial, precisa partir, invariavelmente, de duas premissas. A primeira delas é um pressuposto humanista transformado em lema pela Ciência e que passou a ser conhecido como Pedagogia do Holocausto.

Da frase de abertura de uma palestra realizada em 1965 pelo filósofo alemão Theodor Adorno emergiu a famosa máxima em tom imperativo de que “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. Seu argumento de que seria estéril qualquer iniciativa no campo educacional que não fosse realizada com as atenções voltadas aos reflexos da barbárie nazista faz parte de uma concepção além de seu tempo: em primeiro lugar, de que a educação precisa voltar-se ao fundamento aristotélico de que o homem é um ser social; em segundo, pelo anseio por uma educação construída essencialmente para a ação.

Com esta frase aparentemente descomplicada, Adorno ressalta que a educação seria a única razão objetiva que resta à humanidade: mais do que evitar que a tragédia se repita de outras formas, para construir um presente e um futuro pautados pela tolerância e pela pluralidade, centrados no zelo absoluto aos direitos humanos.

De Adorno passamos a Bauman, autor da segunda premissa. Ao impressionar-se com o volume de evidências reunidas pelos historiadores, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman afirmou que “o Holocausto era uma janela, e não uma imagem na parede. Olhando através dessa janela, pode-se vislumbrar muitas coisas invisíveis”. Uma das chaves para esta perspectiva é o questionamento sobre tudo que se mantém invisível, despercebido do ponto de vista pedagógico, enquanto não enxergamos os conteúdos e os fatos históricos “do outro lado da “janela”. Ao falar sobre “janela”, refletimos sobre oportunidades (de atravessá-la). Nela, estão as possibilidades, praticamente infinitas, de alcançarmos quaisquer objetivos educativos e atingirmos, enfim, a premissa pautada por Adorno.

Até meados da última década, infelizmente, os pensamentos de Adorno e de Bauman não costumavam ser explorados, em toda a sua magnitude, pela educação brasileira. O Holocausto normalmente figurava no rodapé dos livros da educação básica. Com a polarização e a vulgarização da Shoá por parte de governantes, jornalistas e influenciadores, o tema tomou um caminho oposto. De modo geral, a educação brasileira tem dificuldades em lidar com as lições que o Holocausto pode nos proporcionar. A tragédia ainda era vista como um recorte da História conectado exclusivamente à guerra e desvinculado de nossas mazelas contemporâneas. Faltava dar sentido a estas histórias, descartando seu viés conteudista e massificado.

No campo educacional ligado à Shoá, nenhum exemplo materializa tão bem esses fundamentos de Adorno e de Bauman quanto o fenômeno de “O Diário de Anne Frank”. Mais do que ajudar no processo de construção da memória coletiva universal do Holocausto por meio da personificação das vítimas, elemento incomum até meados dos anos 1970, o relato genuíno e sincero de uma adolescente judia que, mesmo em meio a um contexto extremo, continuou escrevendo de maneira tão apaixonada, funciona como um catalisador para essa educação. E por isso é tão fácil se identificar com Anne Frank.

Por gerações, os jovens que leem o diário (e consomem seus subprodutos literários e audiovisuais) reconhecem sua voz, sua maturidade, seus pensamentos e seus desejos íntimos. Problemas, medos, dúvidas e planos são inerentes a qualquer pessoa – o que torna o texto desse gênero literário um instrumento esplêndido de construção de empatia e desenvolvimento da alteridade a partir de um contexto traumático que envolve o ódio e a intolerância.

No entanto, a existência do diário por si só não significa uma construção automática do conhecimento, mas sobretudo um esforço para que ele atinja crianças e jovens em espaços educativos. Se concordamos que as premissas de Adorno e de Bauman já estão bem fundamentadas e compreendidas (e nem sempre estão), e que possuímos em mãos uma ferramenta literária com potencial extraordinário como o texto de “O Diário de Anne Frank”, cabe aos educadores a complexa tarefa de sistematização e elaboração de perspectivas teóricas e de pontes metodológicas.

Nesse caso, o trabalho árduo de produzir sentido e decodificar o conteúdo, mesmo com os grandes riscos e dilemas pedagógicos envolvidos no processo, possibilita se dedicar com que o historiador alemão Bodo von Borries chama de Burdening History (histórias difíceis, tensas ou pesadas). Sua concepção, transformada em referencial teórico, aponta que “a História só é aprendida de forma eficaz sob três condições dadas: se novas perspectivas podem ser ligadas com as antigas, se ela estiver conectada a emoções – negativas ou positivas – e se é relevante na vida”.

A exposição “Anne Frank: deixem-nos ser”, em cartaz na Unibes Cultural e idealizada pela Associação Inspirar-te, concretiza todos esses esforços educativos de maneira lúcida e coerente. Ela materializa o princípio do “nunca mais” por meio de conexões contemporâneas por meio da arte e de ações diretas. Quando falamos “nunca mais”, estamos nos comprometendo a tornar a memória o que toda memória deve ser: útil. Estamos imbuídos de, sim, manusear a memória do Holocausto e utilizá-la como agente transformador, sem vulgarizá-la – e esse é um dos pressupostos do universalismo da Shoá ligado à educação sobre os direitos humanos. E nada melhor do que o legado de Anne Frank para renovarmos nosso pacto coletivo de que vamos identificar os sinais e lutar contra toda e qualquer forma de ódio, intolerância e discriminação, contra qualquer grupo, principalmente as que estão próximas de nós.

* Carlos Reiss é coordenador-Geral do Museu do Holocausto de Curitiba. Membro do comitê executivo da Rede Latino-Americana para o Ensino da Shoá (LAES), da delegação brasileira da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) e da equipe curatorial do Memorial às Vítimas do Holocausto do Rio de Janeiro. Curador-chefe da exposição “Anne Frank: deixem-nos ser” e autor dos livros “Luz sobre o Caos: Educação e Memória do Holocausto” e “Entre as sombras e os sóis: a história de Sala Borowiak”.

Referências:

ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 119-138.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

BORRIES, Bodo von. Jovens e Consciência histórica. In: Bodo von Borries: organização e tradução de Maria Auxiliadora Schmidt, Marcelo Fronza, Lucas Pydd Nechi. Curitiba: W. A. Editores, 2018.

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