
Por Pedro Mastrobuono
“Onde queimam livros, acabam queimando pessoas.”
(Heinrich Heine)
O Dia Nacional do Livro, celebrado em 29 de outubro, não deve ser apenas uma data comemorativa, mas uma oportunidade de reflexão. A leitura é uma das formas mais refinadas de resistência humana. Em tempos de aceleração e de desinformação, o livro permanece como um ato de desaceleração e lucidez, um espaço em que o pensamento respira e a consciência se forma. Ler é um gesto político no melhor sentido da palavra, o de formar cidadãos capazes de discernir, dialogar e construir uma sociedade que pensa por si.
A frase de Heinrich Heine, que abre este texto, carrega um pressentimento histórico. Heine foi um dos grandes poetas e ensaístas alemães do século XIX, nascido em Düsseldorf, de origem judaica, e considerado o último grande poeta do Romantismo e o primeiro intelectual moderno. A sentença “onde queimam livros, acabam queimando pessoas” pertence à peça Almansor, escrita em 1823, quando Heine denunciava a queima do Alcorão durante a Reconquista espanhola. Décadas depois, essa advertência se tornaria trágica profecia, quando o regime nazista queimou também os próprios livros de Heine. O poeta, que viveu exilado em Paris e conviveu com pensadores como Marx e Lassalle, compreendeu como poucos o poder e o risco da palavra escrita. Escolher sua voz como epígrafe, portanto, é reafirmar que todo ataque ao livro antecede o ataque ao ser humano e que a preservação da leitura é, em essência, um ato de defesa da civilização.
A literatura não é um luxo da inteligência, mas um direito da civilização. É por meio dela que o ser humano elabora simbolicamente a dor, a dúvida e o medo. Em Testemunha Ocular, de Ernst Weiss, romance escrito em 1938, a cegueira física de um personagem se transforma em metáfora da cegueira moral de uma sociedade inteira. Ao narrar o colapso de uma Europa exausta e desorientada, Weiss mostra como a ausência de reflexão e a miséria espiritual podem preparar o terreno para o delírio coletivo. Essa parábola literária ecoa ainda hoje: toda vez que uma comunidade abandona a leitura, abre espaço para que o pensamento simplificado e a manipulação simbólica ocupem o lugar da crítica.
O totalitarismo não nasce de um homem apenas, mas de uma sociedade que abdica do hábito de pensar. Hannah Arendt chamou esse fenômeno de “solidariedade dos ressentidos”, a união daqueles feridos que encontram no ódio comum uma forma de pertencimento. Contra essa adesão irracional, o livro é antídoto e refúgio. A leitura nos devolve o espaço da dúvida e nos lembra que o mundo é plural, que não há uma única verdade, nem uma única voz. Cada página lida é um exercício de alteridade, e cada obra, um espelho possível da condição humana.
Por isso, incentivar a leitura é tarefa de sobrevivência cultural. Uma sociedade que lê é mais difícil de manipular, mais capaz de pensar criticamente e mais apta a sustentar as bases da democracia. O livro ensina a esperar, a ordenar o pensamento, a conviver com o silêncio, e o silêncio é o primeiro passo para o diálogo. Ler forma cidadãos e não apenas consumidores de opinião. A ausência desse hábito, ao contrário, nos conduz à superficialidade e à intolerância. Quando o livro se ausenta, a palavra pública se deteriora e a vida em sociedade perde densidade moral.
Há também uma dimensão de afeto e de construção simbólica que não pode ser negligenciada. Cada biblioteca é um abrigo, cada sala de leitura é um território de paz. O livro cria pontes onde antes havia muros e reconcilia o ser humano com o tempo. A leitura devolve profundidade à experiência. É o exercício de olhar o mundo pelos olhos do outro, e esse exercício é, em si, o fundamento da empatia.
Neste Dia Nacional do Livro, o convite não é apenas à celebração do objeto, mas à retomada do hábito e do sentido da leitura. Mais do que colecionar volumes, é preciso permitir que as palavras nos transformem, que ampliem nossos horizontes e curem a cegueira que ameaça o espírito do nosso tempo. O livro não é apenas memória, é prevenção. É o remédio silencioso contra o esquecimento, o fanatismo e a barbárie.
Pedro Machado Mastrobuono é presidente da Fundação Memorial da América Latina, pós-doutor em Antropologia Social, e foi agraciado com a Comenda Câmara Cascudo do Senado Federal por sua trajetória na proteção ao patrimônio cultural nacional.




