Por Pedro Mastrobuono

A museologia, como campo disciplinar, atravessa zonas sensíveis onde ciência, ética e memória se entrecruzam de maneira quase sempre tensa. Diferente de outras áreas do conhecimento, que lidam com dados, processos ou estruturas, a museologia opera sobre a matéria incandescente do tempo humano: aquilo que restou — e aquilo que sobrevive — da experiência de civilizações, indivíduos e tragédias. E nem sempre esse trabalho se dá sem paradoxos.

Falo aqui na condição de quem presidiu o Instituto Brasileiro de Museus por três anos e dirigiu, ao longo de mais de duas décadas, instituições que compõem o núcleo mais representativo da museologia brasileira. Dentre diversas instituições públicas e privadas, fui, por exemplo, presidente do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna; do Instituto de Arte Contemporânea (IAC-USP), com seu acervo de mais de 17 mil documentos de artistas como Sérgio Camargo, Mira Schendel, Willys de Castro e Hércules Barsotti; e da Associação dos Amigos do MAC-USP (AAMAC), fundada e presidida por José Mindlin. Fui reconhecido com a mais alta comenda do Senado Federal — a Comenda Câmara Cascudo — concedida, antes de mim, a apenas sete brasileiros em vida. E indicado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte ao Prêmio Ciccillo Matarazzo como personalidade mais atuante no âmbito cultural. Acrescento a isso minha formação acadêmica multidisciplinar como advogado especializado em direitos autorais, com atuação no campo da museologia  e antropologia, sendo doutor em proteção ao patrimônio cultural e pós-doutor em antropologia social; além de formado em História da Arte e Literatura Italiana por órgão oficial do governo da Itália, país do qual sou cidadão.

Essa autoridade me permite, com serenidade e senso crítico, compartilhar as reflexões que trago de minha mais recente viagem à Europa, que terminou hoje, dia 9 de maio de 2025, com meu retorno a São Paulo. Durante quinze dias, percorri a Polônia participando da chamada Marcha da Vida, visitando os principais campos de concentração e extermínio do regime nazista — Auschwitz, Birkenau, Majdanek — ao lado de um grupo de brasileiros. A visita se iniciou em Roma, onde, por coincidência histórica, desembarquei no fim de semana do sepultamento do Papa. E terminou hoje, no exato dia da eleição do novo pontífice. O ciclo de uma Europa que sepulta e elege Papas, enquanto silencia e recalcitra frente ao seu maior trauma do século XX, torna-se, por si só, uma narrativa carregada de simbolismo.

Na Polônia, onde três milhões de judeus foram exterminados — metade de todas as vítimas judaicas do Holocausto — sendo um milhão e meio deles crianças, os campos de extermínio foram transformados em complexos museológicos tecnologicamente organizados. Fones de ouvido, realidade virtual, roteiros audioguiados, totens trilingues. Tudo funciona. E, paradoxalmente, é isso que inquieta. O espaço da barbárie tornou-se lugar de visitação; o solo saturado de cinzas humanas passou a abrigar estruturas que, em muitos momentos, lembram um parque temático da dor. A eficiência da mediação tecnológica corre o risco de encobrir o abismo moral que ali se abriu. O desafio é tremendo: como musealizar o indizível sem convertê-lo em espetáculo?

Esse paradoxo se repete, com outra feição, em um debate que há décadas atravessa o campo da museologia: a exposição de múmias egípcias. Trata-se de um dos temas mais sensíveis da museologia contemporânea. Afinal, são restos mortais humanos ou objetos arqueológicos? Devem permanecer nos museus europeus que os preservaram ao longo dos séculos ou ser repatriados ao Egito para um sepultamento digno, conforme preceitos da dignidade da pessoa humana? A resposta não é simples. A religião que animava os ritos funerários do Egito antigo já não existe. O próprio Estado egípcio contemporâneo, de maioria muçulmana sunita, guarda distância espiritual e institucional daquela cosmovisão. A repatriação das múmias, nesse contexto, seria um gesto político, mas não necessariamente espiritual. E o valor dos bens culturais, enquanto elementos que compõem a integralidade das coleções arqueológicas e da narrativa museológica, também precisa ser considerado. A museologia não é apenas custódia de ossos, mas mediação de sentidos.

Em ambos os casos — os campos de extermínio e as múmias egípcias — a museologia se vê diante da tensão entre a preservação do patrimônio cultural e a dignidade dos restos mortais humanos. Onde termina o bem cultural e começa a dignidade do corpo? Essa pergunta não admite resposta única, mas exige arcabouço ético, jurídico, antropológico e técnico.

A viagem à Polônia, aliás, revelou outros silêncios e desconfortos. Em diversas cidades visitadas, onde antes da guerra os judeus representavam até 40% da população, hoje não há sinal de presença judaica. Sinagogas vazias, bairros transformados, propriedades redistribuídas. Um esvaziamento humano que implicou, também, uma transformação imobiliária de imensas proporções. Casas, terras e comércios mudaram de mãos. O genocídio redesenhou o mapa da propriedade privada. E esse aspecto, raramente discutido, permanece como uma ferida não elaborada — tanto no plano histórico quanto no jurídico. Em muitos museus visitados por nosso grupo, o acolhimento foi frio. Em hotéis e aeroportos, a indiferença deu lugar, por vezes, à hostilidade. Não é trivial que um país que perdeu três milhões de seus cidadãos judeus continue, ainda hoje, a lidar mal com a memória desses mesmos cidadãos.

Em contraste, a Alemanha pós-7 de outubro deu uma resposta política clara, reafirmando seu compromisso com a memória do Holocausto e com a existência do Estado de Israel. Os netos dos algozes nazistas têm buscado, com lucidez e vergonha, reparar os crimes de seus avós — ainda que simbolicamente. A Polônia, porém, parece ainda presa à angústia de um passado mal resolvido.

Fecho este artigo com uma imagem que permanece comigo desde Roma, onde a viagem teve início e desfecho. Em poucos dias, vi o enterro de um Papa e a eleição de outro. E uma Europa que, num mesmo ciclo geracional, permitiu o extermínio de milhões de judeus e agora assiste a profundas transformações sociais. Em muitas ruas da Itália, da França e da própria Polônia, é comum ver, entre cada dez pessoas, três ou quatro mulheres com véus cobrindo a cabeça. A diversidade cultural se impôs, como se impõe o tempo. E cabe ao novo Papa — a quem couber agora a tarefa de mediar fé e civilização — trazer luz a tempos cada vez mais sombrios.

À museologia, resta manter-se vigilante: que os espaços da memória jamais sejam convertidos em vitrines da indiferença. E que a ciência da preservação caminhe de mãos dadas com a ética da dignidade.

Esta viagem — que realizamos com um grupo de quarenta casais, todos com representatividade expressiva no tecido social da colônia judaica brasileira — foi também um mergulho íntimo nas lacunas da própria história familiar de muitos dos presentes. Preservo aqui, por respeito, a privacidade dos participantes. Mas posso afirmar que são empresários, profissionais liberais, pessoas ligadas ao segmento financeiro e à vida intelectual brasileira, todos com alta formação e grande acesso aos bens culturais. Um primor de organização e logística, com competentíssimo curso prévio, esmiuçando contextos fáticos e históricos. Ainda assim, o impacto foi avassalador. Muitos descobriram, ao longo da viagem, o quanto suas famílias haviam sido atingidas diretamente pelo Holocausto — algo de que, até então, pouco ou nada se falava em suas casas. O silêncio dos sobreviventes criou zonas obscuras, buracos de memória que só agora começaram a ser preenchidos.

É perturbador constatar que Auschwitz — o epicentro do extermínio — foi progressivamente absorvido pela cidade ao redor, como se ali houvesse um parque temático qualquer. Famílias moram ao lado do campo. Crianças jogam bola no entorno. Há cafés, letreiros, trânsito cotidiano. O abismo entre o horror preservado e a vida ordinária é talvez uma das expressões mais dolorosas da anestesia histórica. A cidade abraça Auschwitz como quem incorpora uma atração turística, e não como quem zela por um santuário da dor.

Por tudo isso, esta experiência não se encerra no retorno físico ao Brasil. Ela se prolonga como inquietação, como responsabilidade, como tarefa. E reforça, com ainda mais urgência, o papel da museologia não apenas como técnica de conservação, mas como ética da escuta — mesmo quando o que ecoa é o silêncio.

Pedro Mastrobuono é Presidente da Fundação Memorial da América Latina, Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Doutor em Proteção ao Patrimônio Cultural e Pós-Doutor em Antropologia Social.

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