
Epígrafe
“O teatro é o primeiro espelho em que a humanidade se contempla.”
— Darcy Ribeiro
Desde as primeiras assembleias gregas, quando a pólis se reconhecia nos ecos do teatro, as civilizações compreenderam que a cena é o mais antigo instrumento de educação coletiva. Não apenas o espaço do espetáculo, mas o rito de observação de si mesmo, em que o cidadão, diante da representação simbólica de seus próprios dilemas, podia compreender as tramas morais e sociais que o cercavam. O teatro nasceu como espelho e permaneceu, através dos séculos, como o mais preciso termômetro da consciência de um povo. Sua função nunca foi o entretenimento apenas, mas o exercício de cidadania estética, o laboratório da alma pública.
Ao longo da história, cada sociedade soube reconhecer no palco uma espécie de cartografia moral de seu tempo. Os gregos instituíram a tragédia como método de purificação, catártica e ética, Aristóteles a descreveu como o processo pelo qual o homem, ao assistir o erro de outro, encontra a medida de sua própria humanidade. Shakespeare, mais tarde, ao transformar o teatro em linguagem universal, ampliou esse espelho: projetou nele a sombra e a luz da condição humana, transformando o palco em arena de disputas interiores. E é nesse ponto que o teatro ultrapassa o seu próprio tempo, tornando-se documento antropológico, território da memória imaterial e espaço de preservação simbólica.
No Brasil, contudo, o teatro jamais recebeu o tratamento que lhe caberia como política pública de Estado. Raramente é compreendido como patrimônio imaterial, como forma de transmissão de saberes, identidades e valores coletivos. Os grandes palcos da cidade, outrora templos de reflexão, foram pouco a pouco convertidos em ruínas funcionais. O Teatro Hilton, que abrigou produções marcantes como Bonifácio Bilhões, hoje serve ao Poder Judiciário como sala de reuniões administrativas. O antigo Crown Plaza, que acolheu nomes decisivos da dramaturgia nacional, foi transformado pelo Ministério Público em um arquivo morto de papéis, onde a poeira substitui o aplauso. O desmonte físico dessas casas é também o desmonte simbólico da nação, porque cada teatro que se cala é uma parte da alma brasileira que se apaga.
Enquanto isso, as imagens que projetam o país no exterior revelam o mesmo descompasso. Desde Orfeu Negro, filme que em 1959 conquistou a Palma de Ouro e em 1960 o Oscar de melhor filme estrangeiro, até a recente vitória de 2025, o interregno é mais do que temporal: é sintoma de uma cultura que celebra o instante e abandona o processo. Orfeu representava o encontro da mitologia grega com a favela carioca, a transposição do mito para o corpo do povo. Era a prova de que o Brasil podia universalizar a sua própria dor. Mas desde então, entre
uma consagração e outra, o país perdeu o fio de sua narrativa simbólica. Não houve continuidade, apenas lampejos. O cinema, o teatro, as artes cênicas como um todo deixaram de ser políticas estruturantes para se tornarem projetos episódicos, sem que a nação percebesse que ali residia o seu verdadeiro espelho.
Nesse contexto, revisitar Shakespeare é revisitar a própria condição humana. O Mercador de Veneza, escrito por volta de 1600, é uma das peças mais debatidas da história do teatro. No centro da trama, o personagem Shylock (um agiota de Veneza) representa, para muitos séculos de leitores e espectadores, a encarnação do estigma. A peça foi usada, desde sua estreia, como instrumento de caricatura antissemita, num tempo em que os judeus eram ausentes da Inglaterra e presentes apenas como ideia, como alteridade simbólica. O público da época ria do “outro”, sem se dar conta de que ria de si.
Mas o tempo, que corrige os espelhos, tratou de devolver a Shylock uma dignidade que nem o autor imaginava. Do século XIX em diante, atores como Edmund Kean e Henry Irving começaram a representar o personagem não mais como vilão grotesco, mas como homem ferido pela humilhação, reivindicando humanidade no meio do escárnio. Assim o teatro cumpriu sua vocação antropológica: reinterpretar o passado para purificar o presente. E se o nazismo, nos anos 1930 e 40, sequestrou a peça para legitimar o ódio, retirando dela as falas de compaixão e alteridade, foi o próprio teatro, depois, que devolveu a Shylock sua inteireza moral, transformando a personagem em espelho de resistência.
Entre o preconceito e a compaixão, a história de O Mercador de Veneza foi sendo reescrita não apenas nos palcos, mas na consciência da humanidade. Para o povo judeu, o texto sempre carregou ambiguidade: ora ferida, ora possibilidade de leitura crítica. Mas a cada montagem contemporânea, a peça se converte em exercício de autocrítica das sociedades que ainda se alimentam da intolerância. O teatro, mais uma vez, se prova o espaço onde os traumas podem ser ditos e, ao serem ditos, ressignificados.
É nesse contexto que a montagem atual, apresentada no TUCA, com Dan Stulbach como Shylock, assume uma relevância extraordinária. Sob a direção de Daniela Stirbulov, o espetáculo desloca o tempo da ação para uma contemporaneidade indeterminada, aproximando o público de dilemas que continuam vivos: o racismo, a desigualdade, a sede de vingança, a arrogância do poder e a solidão do diferente. Stulbach encarna o personagem com intensidade ritual, não como vilão ou vítima, mas como homem inteiro, que exige ser visto. Há algo de rito ancestral em sua interpretação, um gesto que conecta séculos de silêncio e de grito. Sua voz carrega a memória dos que foram ridicularizados e também a sabedoria dos que sobreviveram.
Na plateia, na qualidade de pós-doutor em Antropologia Social, fiquei profundamente impressionado com a precisão simbólica da encenação. Shylock usava uma kipá muito semelhante à que eu próprio uso, também com tzitzit para fora, e embora o figurino
remetesse a uma indumentária mais histórica, a semelhança com os trajes que boa parte de nós, da colônia judaica, utilizamos até hoje era notável. Quando o personagem colocava seu chapéu e enfrentava os xingamentos e a hostilização de seus pares, o desconforto era de uma atualidade assustadora. Em tempos de tensões globais renovadas, a peça se tornava um espelho doloroso e necessário. É impressionante como uma obra escrita há mais de quatrocentos anos ainda é capaz de refletir, com tamanha nitidez, as angústias e a pressão social que o povo judeu vive até hoje. Essa permanência revela a força do teatro, a potência da interpretação e a maneira como, através das artes cênicas, o efeito espelho se impõe de forma tão eficiente, conduzindo o público à reflexão mais íntima e mais urgente.
A encenação é sóbria e precisa, evitando excessos e privilegiando a palavra. Cada pausa é política, cada silêncio é histórico. A plateia, inevitavelmente, se vê envolta num espelho: o da intolerância que ainda nos habita. A peça, assim, deixa de ser um documento antigo para se tornar uma denúncia contemporânea. No palco, o texto shakespeariano deixa de falar do judeu de Veneza e passa a falar do humano de São Paulo, de qualquer cidade moderna que ainda não aprendeu a conviver com a diferença. Ao fim da apresentação, todos aplaudiram de pé. Para quem é membro da colônia judaica, trata-se de um espetáculo obrigatório, não apenas pela excelência da montagem, mas pela relevância do tema e pela coragem de reabrir, com arte e sensibilidade, feridas que a humanidade ainda não soube cicatrizar.
Assistir a O Mercador de Veneza hoje, no Brasil, é um ato de resistência cultural. É reencontrar, no corpo do ator e na palavra do poeta, a consciência adormecida de um país que esqueceu o valor do seu teatro. Porque o teatro, como patrimônio imaterial, é a forma mais elaborada de memória coletiva. Ele guarda, em sua repetição viva, aquilo que as instituições insistem em apagar. É o único arquivo que respira.
Enquanto as políticas públicas se fragmentam, enquanto os teatros são convertidos em repartições, o palco resiste como última trincheira do pensamento simbólico. O teatro é, talvez, o que resta de mais antigo e mais urgente em nossa civilização: a arte de enxergar o outro e, por meio dele, reconhecer-se. É o lugar onde a alteridade não é conceito, mas presença.
E talvez por isso, obras como O Mercador de Veneza continuem a reverberar, porque nelas a humanidade se vê exposta em sua ferida mais funda. A peça nos lembra que o preconceito não pertence ao passado, mas à parte de nós que ainda não evoluiu. E o teatro, como lembrou Darcy Ribeiro, é o primeiro espelho em que a humanidade se contempla. No Brasil, onde os espelhos são constantemente cobertos pela poeira do descaso, é urgente que o teatro volte a ocupar o centro das políticas públicas e da vida cultural. Não há nação sem palco, porque não há povo sem memória.
Enquanto isso, o palco do TUCA, iluminado pela presença de Dan Stulbach, devolve à cidade a dignidade do olhar. Ali, diante do público, o personagem que já foi símbolo de ódio se torna signo de reflexão. É o próprio teatro lembrando ao país que a arte não é luxo, é estrutura de consciência. Que os teatros brasileiros possam, um dia, ser tratados não como imóveis, mas como organismos vivos, como patrimônios imateriais que sustentam a alma coletiva. E que cada aplauso seja entendido, finalmente, como ato político e como gesto de esperança.
Pedro Machado Mastrobuono é presidente da Fundação Memorial da América Latina, pós-doutor em Antropologia Social, e foi agraciado com a Comenda Câmara Cascudo do Senado Federal por sua trajetória na proteção ao patrimônio cultural nacional.




