Por Pedro Mastrobuono

Partindo da obra Rosa e Azul (1881), de Pierre-Auguste Renoir, como paradigma para refletir sobre o papel do educativo em museus de arte.

Este artigo nasceu a partir de uma conversa especialmente agradável com um jovem amigo, filho de um casal querido e próximo à minha família. Brilhante, universitário, e, o que é cada vez mais raro, dotado de um genuíno interesse pela história da arte, sempre guiado por uma sensibilidade ética e moral profundamente afinada com os valores aqui discutidos. Em homenagem a ele, David Rabinovitsch, dedico estas reflexões, por representar uma luminosa exceção em tempos em que a fruição estética é tantas vezes dissociada do compromisso humano que deveria acompanhá-la.

A presença de obras de arte em instituições museológicas vai além da exibição de sua beleza plástica. Em um mundo atravessado por polarizações violentas e discursos que naturalizam o sofrimento humano, torna-se imperativo que os museus não se limitem à contemplação formal. A mediação ética, especialmente em obras que carregam narrativas de perda, violência ou apagamento, deve ser uma extensão natural do papel educativo de qualquer instituição cultural que pretenda dialogar com o seu tempo.

A pintura Rosa e Azul – As Meninas Cahen d’Anvers, de Pierre-Auguste Renoir, foi adquirida pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) em 7 de julho de 1952, por iniciativa direta de seu fundador, com recursos obtidos em leilão em Nova York. Desde então, tornou-se uma das obras mais queridas do acervo, figurando com destaque nas salas principais do museu e em materiais institucionais.

A obra foi concluída no início de 1881, após uma série de sessões de pose que se estenderam até fevereiro daquele ano, pouco antes de Renoir viajar para Argel. Em março de 1881, o artista escreveu a seu amigo Théodore Duret relatando o cansaço extremo que sentia após finalizar o retrato das meninas. Em 1900, a obra foi exibida na galeria Bernheim-Jeune, em Paris, sob o título oficial Rose et bleu, e tornou-se uma referência do retrato burguês da infância na pintura impressionista.

Na tela, Renoir retrata duas irmãs: Alice Cahen d’Anvers, nascida em fevereiro de 1876 em Paris, e Elisabeth Cahen d’Anvers, nascida em 27 de dezembro de 1874, também em Paris. Alice, a menina de vestido rosa, casou-se em 1895 com o general britânico Charles Vere Ferrers Townshend, e viveu até 1965, falecendo em Nice, aos 89 anos. Elisabeth, a menina de azul, converteu-se ao catolicismo ainda jovem, em 1895, e teve dois casamentos. Apesar da conversão, Elisabeth foi detida durante a ocupação nazista na França, em 26 de janeiro de 1944, quando saía da missa na Abadia de Solesmes, em companhia da escritora Marguerite Aron. Ambas foram presas pela Gestapo. Elisabeth foi deportada por sua ascendência judaica e morreu no trem que a levava a Auschwitz, em março de 1944, aos 69 anos.

Por décadas, a obra foi exibida com legendas sucintas, seguindo o modelo curatorial do museu que privilegia os chamados cavaletes de cristal, estruturas transparentes que priorizam a autonomia visual da obra. A ficha técnica tradicionalmente se limitava ao nome da pintura, artista, data e breve referência à família retratada.

A história trágica por trás de uma das meninas, porém, não fazia parte da narrativa museológica até 1987, quando, durante uma exposição realizada na Fundação Pierre Gianadda, na Suíça, o sobrinho das retratadas, Jean de Monbrison, revelou à equipe do museu que Elisabeth, a menina de azul, havia sido deportada e morrera a caminho de Auschwitz. A informação, trazida de forma quase íntima, foi posteriormente confirmada por registros históricos independentes.

Esse exemplo é aqui citado apenas como paradigma, por se tratar de uma obra amplamente conhecida e acessível ao público da cidade de São Paulo, onde resido. A escolha do caso não representa qualquer crítica ao MASP, que é, ao contrário, uma das instituições culturais mais queridas pelos paulistanos e uma referência internacional de museologia. O que se pretende discutir é uma questão ética mais ampla, que envolve os limites e responsabilidades da mediação museológica. O exemplo serve apenas como pano de fundo para refletirmos sobre práticas que transcendem esta ou aquela instituição, sendo encontradas em muitos outros museus, coleções e espaços culturais ao redor do mundo.

A revelação daquele destino, no entanto, permaneceu ausente das legendas. Até hoje, a ficha técnica oficial da instituição, disponível em seu site, não menciona os nomes completos das meninas, tampouco o fato de que uma delas foi vítima da Shoá. A mediação dessa obra segue, portanto, em um registro puramente estético, salvo em momentos pontuais de visitas mediadas por educadores com conhecimento prévio da história.

O papel do setor educativo de museus não deveria se restringir à explicação formalista ou cronológica de uma obra, especialmente quando as instituições se propõem a ser um espaço público de formação cultural, ética e crítica. A questão que se deseja debater é se eventuais omissões, ainda que involuntárias, de fatos históricos de tamanha gravidade comprometem a integridade da mediação museológica.

Vivemos um tempo em que o consumo de imagens e informações convive com o esvaziamento de significados humanos. Atrocidades como o sequestro de idosos e de mulheres grávidas, estupros, decapitações, morte violenta de crianças e a banalização da dor alheia ocupam diariamente os noticiários. E é, muitas vezes, esse mesmo público, aquele que assiste impassível à barbárie, que percorre as salas de museus com ares de sofisticação.

De que serve contemplar uma obra de arte com erudição, se a sensibilidade moral está ausente? A beleza formal, isolada da empatia e do reconhecimento do sofrimento humano, não constrói civilização, apenas decora a barbárie.

No passado, os colecionadores de arte eram, majoritariamente, profissionais liberais, advogados, médicos, psicanalistas, ligados às humanidades e habituados à complexidade do drama humano. Viam na arte um espelho refinado de angústias e transcendências, uma forma de sublimação que dialogava com o que havia de mais elevado na experiência subjetiva.

Hoje, com a financeirização do mercado de arte, as obras se transformaram em ativos especulativos, armazenadas em galpões, raramente expostas ao público ou sequer vistas por seus próprios proprietários. A lógica do investimento substituiu o olhar contemplativo, e o valor simbólico da arte foi subordinado à sua cotação em leilão.

A obra Rosa e Azul representa, assim, uma oportunidade urgente: a de repensar o papel da mediação museológica em contextos de memória e violência. A inclusão de uma legenda ampliada, que mencione o destino de Elisabeth, a disponibilização de audioguias com recortes históricos e a criação de visitas temáticas que articulem arte, ética e história seriam passos fundamentais para que museus assumam seu papel não apenas como templos da beleza, mas como escolas da sensibilidade e da consciência.

O museu deve assumir sua função educativa plena: exibir a beleza artística e responsabilizar-se por sua inserção no tecido histórico, político e ético da sociedade. Rosa e Azul representa uma chance de conectarmos estética, memória e respeito, constituindo um exemplo de como o museu pode ser um agente civilizatório maior do que a mera contemplação fria.

A arte não existe para ser bela, ela existe para ser humana. E uma humanidade que ignora o destino de suas Elisabeths está condenada a repetir a indiferença que permitiu sua perda. Que o museu não seja apenas o lugar do olhar, mas também o lugar da escuta, do passado e da memória, da dor que ainda pulsa silenciosamente entre as molduras.

Pedro Mastrobuono é Presidente da Fundação Memorial da América Latina, Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Doutor em Proteção ao Patrimônio Cultural e Pós-Doutor em Antropologia Social.

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