Por Marcela Tiboni

Outro dia um dos meus filhos chorou e me abraçou apertado, enquanto falava apressado em meio ao choro que, no auge dos seus cinco anos, ele não acreditava mais nem em Deuses nem no diabo. Eu acolhi o choro com meus próprios olhos cheios de água, fiquei enlaçada em seus pequenos braços tentando compreender de onde vinha sua decisão e o que simbolizava o seu choro.

Quando ele finalmente se acalmou, ele me explicou, disse que se lembrou de uma conversa que eu tive com ele meses atrás quando conversávamos sobre universo, deuses, mundo. Eu havia dito que algumas pessoas, de algumas crenças achavam que famílias como a nossa não deveriam existir, mas que eu não concordava com aquilo. Ele me disse que o choro daquele dia, meses depois deste nosso papo, era de mágoa, de tristeza, porque ele não achava que nossa família era errada, nem quebrada, mas que então preferia não acreditar nem nos deuses e nem no diabo. Nosso papo foi longo, um diálogo bonito que envolveu crenças, interpretação de palavras, sociedade, pessoas e afeto. Ele parou de chorar e logo foi sentar a mesa para fazer uma dobradura em formato de raposa. Já eu fiquei com este momento em minha cabeça, pensando em quantas camadas aquele papo e aquele choro podiam carregar.

Eu sou uma mulher lésbica, junto a Mel, minha esposa, temos dois filhos – gêmeos. Desde que nossos filhos nasceram as palavras luta e celebração parecem se entrelaçar em nossos pensamentos e ações. Esta conversa com o meu filho me deixa claro o quanto uma criança tão pequena é capaz de absorver sentimentos de enfrentamento, lutas e conquistas que vivencia ao lado de sua família desde o minuto que chegou ao mundo. Por um lado eu fico feliz em ver meus filhos fortes e conscientes de que nossa família é baseada no amor, respeito e afetos. Por outro fico devastada em perceber que outras crianças não carregam o choro lamurioso que meu filho carregou no dia em que conversamos sobre famílias.  Este segue sendo um assunto complexo, para toda a sociedade, são muitas frentes, muitas lutas, muitas vitórias, alguns retrocessos e eu, otimista que sou, vejo um caminho bonito a trilhar no futuro. Mas o dia 28 de junho – Dia Internacional do Orgulho LGBT – ainda é uma celebração da luta.

Tentaram me impedir de amamentar nossos filhos no recinto hospitalar porque a diretora do hospital dizia já haver uma mãe para amamenta-los, afinal eu não tinha engravidado e minha esposa sim. Tive meu nome negado na Certidão de Nascido Vivo (CNV) dos nossos filhos porque no documento só havia espaço para uma mãe. Tive o RG dos nossos filhos negado pela Policia Federal em uma viagem a Argentina, porque o nome das mães no documento deles estava abreviado, afinal, não cabia o nome extenso das duas mães um ao lado da outro. Quase perdi a vaga em uma escola pública em São Paulo porque o sistema provavelmente cruzou dados com a Receita Federal, e para a Receita eu não sou mãe dos nossos filhos. Sim, desde que nossos filhos nasceram já foram muitas lutas para que sistemas, sociedade, pessoas e instituições compreendam que somos duas mães, iguais, sem critérios de importância ou veracidade.

Mas é imprescindível relatar aqui as infinitas vitórias que já vivemos, individuais e coletivas. O mesmo hospital que tentou me impedir de amamentar meus filhos, por ser uma mãe não gestante, hoje incentiva a amamentação das duas mães em todos os casos que o casal deseja vivenciar a amamentação dupla. A mesma CNV que excluiu o meu nome foi modificada e, atualmente, conta com a palavra filiação, permitindo que duas pessoas do mesmo gênero constem no documento. O RG que foi negado pela Polícia Federal vem sendo substituído nacionalmente pela CIN (carteira de identidade nacional) e neste novo documento a palavra que consta é filiação, e novamente permite que diferentes modelos de família caibam no documento de uma criança. A vaga na escola pública saiu, e hoje a escola com 270 crianças trabalha e vivencia a diversidade entre seus profissionais, crianças e famílias. Poderia listar aqui muitos projetos de Lei que contemplam os diferentes formatos de família, ONGs como Mães pela Diversidade, Casa1, Casa Neon Cunha, ABGLT que fazem um trabalho incansável para que pessoas LGBTI+ vivam vidas dignas e felizes.

Quando meus filhos nasceram eu tinha medo, eu era luta, mas dia a dia eu venho sendo envolvida por esperança, por celebração, pelo sentimento de acreditar que as transformações são possíveis e já estão acontecendo. Ser uma mãe lésbica em 2024 é infinitamente mais possível, mais leve e acolhedor do em tempos passados. A sociedade está mais aberta, as leis mais plurais, os direitos mais garantidos. Mas eu queria terminar este texto voltando a falar do papo com o meu filho…

Talvez o que meu filho precise não é saber menos. Não é escutar menos as lutas de suas mães. Não é ser poupado da realidade que em muitos momentos podemos vivenciar. Talvez o que ele precise é de aliados, de outras crianças com quem possa conversar, outras crianças, famílias e pessoas com quem possa mostrar sua composição familiar e receber de volta um sorriso e acolhimento. Talvez o que ele precise é que outras famílias saibam que nossa família existe, que duas mães, dois pais, famílias trans ou não binárias não sejam mais um tabu. Talvez meu filho precise saber que muitas lutas não serão mais necessárias e então ele ficará só com as delícias e sorrisos das celebrações!

Marcela Tiboni é mãe, lésbica, escritora sobre dupla maternidade e criadora de conteúdo sobre parentalidade não heteronormativa. Formada em Artes Visuais pela FAAP e mestre em História da Arte pela USP. Escreveu os livros MAMA: relatos de maternidade homoafetiva (2019), Maternidades no Plural (2021) e DESMAMA: memórias de uma mãe com outra mãe (2022). Trabalha com palestras institucionais sobre sexualidade, gênero, maternidade e parentalidade não heteronormativa.

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