
Por Pedro Mastrobuono
Em algumas comunidades inuítes do extremo norte da América, especialmente durante períodos de escassez extrema, foi documentada uma prática brutal e paradoxalmente ritualizada: o abandono deliberado de pessoas idosas. Em certas circunstâncias, quando a sobrevivência coletiva estava em risco, os mais velhos — por vezes de forma voluntária, por outras, de maneira induzida — eram deixados para morrer no frio, afastados da comunidade, sem provisões. Não há evidências consistentes de que fossem colocados à deriva em icebergs, como sugerem algumas lendas populares, mas há registros históricos e etnográficos de que, em momentos de fome severa, essa prática — conhecida como senilicídio — foi adotada como medida extrema de autopreservação do grupo.
Trata-se de um dilema ético profundo, mas que, de algum modo, ecoa em tempos modernos, quando a sociedade, ao se deparar com aquilo que julga não mais útil ou oneroso, simplesmente abandona. E é essa imagem congelada — literal e simbólica — que nos oferece um espelho incômodo: o que temos feito com o nosso patrimônio cultural?
Há no Brasil de hoje um processo contínuo e silencioso de abandono das políticas públicas de preservação patrimonial. Monumentos ruem, museus deterioram-se, arquivos se perdem, comunidades tradicionais são silenciadas, e os profissionais que resistem nesse campo são invisibilizados. Estamos, pouco a pouco, deixando nosso patrimônio à míngua, sem abrigo, sem orçamento, sem voz. Estamos deixando o patrimônio no gelo, como se fosse um velho oneroso — digno de respeito cerimonial, mas não de investimento concreto.
Esse abandono contemporâneo não é silencioso — ele range como gelo se partindo sob os pés. Um exemplo gritante é o desprezo com que o patrimônio fossilífero brasileiro tem sido tratado, apesar da sua importância científica, cultural e simbólica para o país e para o mundo.
Está em vigor desde 31 de maio de 1973 o Decreto nº 72.312, que ratifica a Convenção da UNESCO de 1970, cujo objetivo é combater o tráfico ilícito de bens culturais e proteger, de forma ampla, o patrimônio arqueológico e paleontológico das nações signatárias. Logo no artigo 1º, inciso “a”, estão definidos como bens culturais aqueles de interesse para a arqueologia, etnologia e, de maneira expressa, para a paleontologia. Ou seja, há mais de meio século o Brasil assumiu o compromisso formal e internacional de proteger seus fósseis como parte integrante do seu patrimônio cultural.
E, no entanto, até hoje, o IPHAN — principal órgão federal encarregado da preservação do patrimônio cultural brasileiro — não conta sequer com um paleontólogo em seus quadros permanentes. Não se trata apenas de uma lacuna funcional, mas de uma contradição institucional frontal: como proteger o que não se conhece? Como garantir a salvaguarda de fósseis raros, muitas vezes traficados para fora do país, sem corpo técnico especializado, sem plano de carreira, sem concursos, sem política nacional de proteção e sem diálogo com as universidades?
Essa ausência não é acidental — é sintomática. É o retrato de um país que ainda não incorporou plenamente a ciência à sua política patrimonial. Que segue tratando a paleontologia como um apêndice periférico, e não como um pilar da memória terrestre e do nosso vínculo mais profundo com o tempo e a origem da vida. Enquanto países como o Canadá, os Estados Unidos e a Argentina possuem instituições robustas voltadas à pesquisa, à proteção e à musealização de seus fósseis, o Brasil assiste à evasão de suas riquezas geológicas e à destruição de seus sítios por pura inação.
Mesmo assim, o IPHAN continua de pé. E só continua de pé por causa da resiliência obstinada de seus servidores, homens e mulheres vocacionados, que, mesmo diante da omissão crônica do Estado, se desdobram para cumprir suas missões. São os mesmos que enfrentam vistorias em edifícios prestes a ruir, sem apoio, sem gratificação, muitas vezes sem sequer a segurança adequada para inspecionar o que ameaça desabar. São eles que redigem pareceres, constroem laudos, defendem teses de tombamento, formulam políticas de preservação e tentam, dentro do possível, evitar o colapso total.
O mesmo pode ser dito do IBRAM, que tive a honra de presidir. Durante minha gestão, acompanhei de perto o esforço quase heroico de técnicos, museólogos, restauradores e historiadores que, mesmo diante de salários defasados, falta de concursos e de estrutura mínima, mantinham vivas as funções museológicas e a guarda dos acervos. São essas pessoas, não os slogans de ocasião, que mantêm a cultura brasileira respirando.
Não são gestores eleitoreiros que mantêm o IPHAN e o IBRAM respirando — são os técnicos, os especialistas, os servidores públicos de carreira, que sustentam, com o próprio corpo, as ruínas que ainda não caíram. A ausência de políticas públicas estruturadas, somada à escolha de dirigentes desprovidos de qualquer interface com o campo da museologia, da arqueologia ou da preservação cultural, converte essas instituições em corpos esquecidos em meio à neve — resistentes, mas congelados pela negligência.
Em um país com tantos fósseis de importância mundial, permitir que o órgão responsável pela proteção cultural sequer possua paleontólogos é o mesmo que deixá-lo — à semelhança dos anciãos inuítes — exposto no gelo, à espera de seu fim. O senelicídio moderno, aqui, se consuma por omissão e desprezo, não por necessidade coletiva — e essa é talvez sua face mais cruel.
Mas ainda é possível reverter esse ciclo. Não com discursos vazios ou cerimônias protocolares, mas com investimento público consistente, com respeito institucional, com formação técnica permanente e com concursos públicos que rejuvenesçam as equipes e reoxigenem a inteligência das instituições culturais brasileiras. É preciso tirar o patrimônio do gelo e colocá-lo novamente ao centro — não como peça decorativa, mas como parte viva da construção do futuro.
Que o Brasil reconheça, antes que seja tarde, que a memória é um bem insubstituível. E que quem abandona seu passado — como os que abandonam seus velhos — perde não apenas a história, mas a própria humanidade.
Pedro Mastrobuono é Presidente da Fundação Memorial da América Latina, Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Doutor em Proteção ao Patrimônio Cultural e Pós-Doutor em Antropologia Social.