
Por Pedro Mastrobuono
No Brasil, o dia 25 de junho é dedicado ao Imigrante. A data nos convida à memória, mas também à consciência. Recordar os fluxos migratórios que moldaram a paisagem cultural, econômica e afetiva do país é essencial – mas é igualmente urgente pensar o que hoje significa migrar.
No Memorial da América Latina, convivemos diariamente com migrantes e refugiados. A Casa da Venezuela, que corajosamente instalamos em nosso complexo, acolhe centenas de venezuelanos que chegam ao Brasil após rotas incertas, longas, nem sempre diretas. Muitos desses homens e mulheres vieram primeiro pelo Chile, pelo Peru, tentando reconstruir suas vidas em países vizinhos antes de cruzar novamente as montanhas andinas rumo ao Brasil. O que os move? Certamente não é a ambição, tampouco a aventura. É a perda.
Ao contrário da imagem deturpada que por vezes se faz do refugiado – como alguém que mendiga oportunidades — o refugiado é, antes de tudo, aquele que teve de deixar para trás o próprio mundo. Ele não migra: ele foge. Sua rotina foi interrompida por forças que estão além de seu controle: guerras, colapsos institucionais, crises humanitárias, perseguições. E, ao fugir, perde casa, trabalho, familiares, língua, referências e, em muitos casos, parte de sua identidade. O refúgio não é um projeto de vida – é a vida tentando continuar, apesar de tudo.
Em 2023, quando assumi a presidência da Fundação, passavam pela fronteira de Roraima cerca de 300 venezuelanos todo santo dia, sete dias por semana. Hoje, são mais de 450. Aumentou o número, agravou-se a urgência. Mas essa história não é recente – nem exclusiva da Venezuela.
São Paulo abriga hoje mais de 40 mil haitianos. Carregam em sua história uma diáspora negra que atravessa séculos, marcada por deslocamentos forçados, tráfico humano, escravidão, racismo estrutural e invisibilidade. Antes deles, italianos, sírios, libaneses,
japoneses, bolivianos. Todos chegaram em busca de dignidade, todos trouxeram consigo uma pátria na bagagem e uma nova pátria no coração.
Mas a migração é um fenômeno mais profundo do que nossas fronteiras atuais conseguem conter. O próprio conceito moderno de nação — com limites fixos e passaportes — é uma construção recente. Antes dele, os povos se deslocavam com o tempo, com o clima, com os ciclos da natureza. Povos indígenas, como os tupinambás e tupiniquins, percorriam o litoral atlântico em longas jornadas, muito antes que o conceito de “Brasil” sequer existisse. Para eles, não havia limites entre países – porque não havia países.
Do ponto de vista histórico, é possível afirmar que a humanidade inteira é feita de migrantes. A própria espécie humana surgiu em movimento: saindo da África e povoando o mundo em ondas sucessivas. Quando o Primeiro Templo de Jerusalém foi destruído, o povo hebreu foi levado para o exílio babilônico, dando origem à primeira diáspora registrada. Séculos depois, os judeus seriam novamente expulsos da Península Ibérica, sob decreto dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, no fim do século XV. E essa é apenas uma das muitas diásporas que compõem o mosaico humano.
A diáspora negra, forjada na violência colonial, foi ainda mais cruel: milhões de pessoas foram sequestradas de suas terras, arrancadas de suas culturas e espalhadas como mercadoria por diversos continentes. Também houve migrações silenciosas, como as das populações armênias, ciganas, curdas, entre outras tantas que até hoje caminham em busca de terra firme para viver e lembrar.
A experiência de migrar — seja por escolha ou por necessidade — parece estar inscrita em nosso DNA. Trazemos, em alguma medida, uma memória atávica de deslocamentos, como se fôssemos todos herdeiros de uma longa travessia. A ancestralidade nômade ecoa dentro de nós: mesmo os que vivem no mesmo bairro há gerações, carregam em suas células as marcas de exílios remotos, de encontros entre culturas, de desenraizamentos e reconstruções.
Na América Latina, esse processo é ainda mais intenso. Aqui se sobrepõem camadas de identidades, idiomas, saberes e sofrimentos. Somos filhos da travessia. E, por isso mesmo, somos também responsáveis por acolher.
No Memorial da América Latina, acreditamos que a memória não é um fim em si, mas um instrumento de empatia. Procuramos fazer do Memorial da América Latina não apenas um espaço de cultura, mas um verdadeiro abrigo simbólico da dignidade humana. Celebrar o Dia do Imigrante é, portanto, mais do que um gesto de lembrança — é um ato de justiça. É reconhecer que por trás de cada migração há uma história, uma dor, uma esperança. E, sobretudo, é admitir que todos nós — em algum momento, em alguma medida — fomos, somos ou seremos migrantes.
Pedro Mastrobuono é Presidente da Fundação Memorial da América Latina, Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Doutor em Proteção ao Patrimônio Cultural e Pós-Doutor em Antropologia Social.