Por Carolina Mestriner

Data é tributo a Luiz Martins de Souza Dantas, diplomata brasileiro que salvou vidas no Holocausto

Foi sancionada recentemente a Lei 14.938/2024, que institui o dia 16 de abril como o Dia Nacional da Lembrança do Holocausto. A iniciativa, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Lula, estabelece uma efeméride dedicada a honrar a memória dos cerca de 6 milhões de judeus assassinados pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial. A escolha do 16 de abril não foi aleatória: trata-se da data de falecimento, em 1954, do diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, um dos dois cidadãos do país reconhecidos pelo Estado de Israel com o título de Justo entre as Nações, concedido àqueles que arriscaram suas vidas para salvar judeus da perseguição nazista. À época embaixador do Brasil na França, ele usou sua posição para emitir vistos a centenas de refugiados, muitos deles judeus, salvando-os dos campos de extermínio.

Ter sua vigência a partir de 2025 é um marco simbólico e histórico, já que este ano marca os 80 anos da libertação de Auschwitz — o principal campo de concentração nazista — e também o fim da Segunda Guerra Mundial. Em razão desse duplo aniversário, diversas iniciativas estão sendo realizadas ao redor do mundo para lembrar as vítimas e refletir sobre os impactos daquele período. Para o deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), relator da proposta, a lei atende à “exigência de tratar de tema de alta significância nacional. Com efeito, o Holocausto foi um acontecimento que deixou marcas e reflexões profundas, que ultrapassam barreiras territoriais e dizem respeito a toda a humanidade”.

Do ponto de vista histórico, há ainda uma outra forma de interpretar a nova lei. O Dia Nacional da Lembrança do Holocausto pode ser visto como um gesto de reparação. Documentos e estudos comprovam que o Brasil, durante o Estado Novo (1937-1945), negou entrada a judeus refugiados que tentavam escapar da Europa, mesmo quando tinham familiares aqui. Em alguns casos, vistos foram cancelados e pessoas que já estavam em trânsito ou no território brasileiro foram devolvidas à Europa. O historiador Fábio Koifman, no livro Quixote nas Trevas, analisa o papel de diplomatas brasileiros que ajudaram judeus (como Souza Dantas), mas também revela como a política externa do governo de Getúlio Vargas os punia por isso — revelando a contradição entre ações individuais de resistência e a política oficial de fechamento e deportação.

Por todos esses motivos, e considerando as ameaças do presente, o reconhecimento institucional do Holocausto no Brasil é mais do que um gesto político ou memorial. É, sobretudo, um importante instrumento educativo. Em tempos de desinformação, negacionismo histórico e científico, discursos de ódio e avanço do antissemitismo em diferentes contextos, datas como esta reforçam o compromisso com a memória e com a educação como mecanismos de prevenção contra a repetição da barbárie.

A doutora em Ciências da Religião Andréa Kogan, pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP, destaca justamente esse aspecto preventivo da memória. Em entrevista feita por telefone, ela alerta que “quando os números são altos, a gente vê muitos casos de antissemitismo, o Holocausto vem à tona porque a gente sabe quando o antissemitismo — palavras, pichações etc. — aparece, o que pode vir depois, como aconteceu na Segunda Guerra”. A fala aponta para a necessidade de reconhecer os sinais de intolerância em sua fase inicial, antes que se tornem políticas de extermínio ou violência institucionalizada.

Além da função de alertar, a criação de efemérides como o Dia Nacional da Lembrança do Holocausto também oferece espaço para pensar as múltiplas identidades que compõem o Brasil contemporâneo. “Ter um dia de lembrança de qualquer genocídio é importante porque marca a realidade trágica de vários povos que compõem o Brasil”, acrescenta Andréa Kogan. O país recebeu muitos judeus que escaparam da guerra ou sobreviveram aos campos de concentração — suas trajetórias ajudaram a construir a sociedade brasileira, assim como as histórias de outras comunidades que também enfrentaram perseguições e apagamentos.

Nesse contexto, os meios de comunicação e as instituições culturais desempenham papel fundamental na construção dessa memória coletiva. A cobertura responsável de datas como esta pode ajudar a difundir conhecimento histórico, promover empatia e conscientização, e combater estereótipos. Museus, centros culturais, escolas, universidades e veículos de imprensa têm o dever de explorar essas datas para além das formalidades, criando espaços de escuta, diálogo e formação crítica.

Ao se consolidar no calendário oficial brasileiro, o Dia Nacional da Lembrança do Holocausto pode se tornar uma oportunidade recorrente para ações educativas — desde debates nas escolas até campanhas informativas nas redes sociais, passando por exposições, mostras de cinema e publicações acadêmicas e jornalísticas. É também uma chance de reafirmar a importância do ensino da história, especialmente em sua relação com os direitos humanos e a dignidade de todos os povos.

Na Unibes Cultural, a data será celebrada com uma série de ações educativas e culturais, incluindo duas exposições que abrem ao público no dia 30 de abril. A mostra Entre Páginas, Tintas e Malas: A memória enquanto narrativa do existir apresenta desenhos e objetos produzidos por alunos do Colégio Benjamin Constant durante o desenvolvimento de projetos interdisciplinares. Com base em estudos de Arte, História e Literatura, os trabalhos propõem uma reflexão profunda sobre o Holocausto a partir das experiências relatadas pelos sobreviventes.

Já a exposição fotográfica Retratos Revelados – Sobreviventes do Holocausto, com curadoria da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e cocuradoria do fotógrafo Jacob Bosch Contreras, reúne retratos analógicos em preto e branco produzidos por quatro fotógrafos que captaram, com sensibilidade e respeito, a dignidade e a singularidade de quem sobreviveu ao horror e escolheu o Brasil para reconstruir sua vida. As imagens, feitas com câmeras analógicas e película fotográfica, valorizam o tempo do encontro e o gesto artesanal, transformando memória em presença. Com isso, aproveitamos as efemérides para conectar passado e presente, e diferentes gerações, através da cultura, da arte e do encontro. Há muitas formas de lembrar — e todas elas importam, especialmente quando nos ajudam a manter viva a memória do que nunca deve se repetir. Que o 16 de abril seja, ano após ano, um dia de aprendizado, escuta e resistência contra o esquecimento.

Fontes:

Carmim, JuliaCaroline de Toni pauta criação do Dia da Lembrança do Holocausto na CCJ, Estadão, Política, 18 março 2024.

Koifman, Fábio. Quixote nas Trevas: o diplomata Luiz Martins de Souza Dantas e o resgate de judeus durante o nazismo. Editora Record, 2002.

Entrevista com Andréa Kogan, doutora em Ciências da Religião e pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP. Conduzida por telefone, abril de 2025.

Câmara dos Deputados – Projeto de Lei nº 2.255/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2351151

Yad Vashem – The World Holocaust Remembrance Center. Página sobre Luiz Martins de Souza Dantas. Disponível em: https://www.yadvashem.org

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